O Peixe na Areia

Foto por Jonathan Borba em Pexels.com

Você tenta respirar, mas não consegue. Você não é mais você, tornou-se um peixe agonizando na areia. Suas crenças, seus desejos, suas manias, suas certezas evaporaram, seu mundinho ruiu, as pernas que te sustentavam se partiram como delicados corais. Você finalmente depara-se com a absoluta fragilidade humana, sua finitude.

Ninguém pode respirar por você, ninguém. Você que nem se lembra como se respira. Acorda e vai viver sua vida. Vive sem pensar no ar que circula no seu sangue, que é trabalhado nos seus pulmões. Resolve contas à pagar, irrita-se com que está ao seu lado, planeja realizações que possam te deixar mais satisfeito com a vida, envia mensagens tolas, lê notícias inúteis, ouve música, toma banho, café, almoça e janta. Vive, normalmente, sem se lembrar de que o ar circula por dentro e por fora, entrando pela janela da alma, fazendo as árvores bailarem, e as nuvens esculpirem imagens de sonhos. Tudo inconscientemente respirável, comum, corriqueiro, banal.

De repente, do nada, você tenta respirar e não consegue. Surge na sua boca uma música feia, desafinada, um grito de morte. Você desaparece, sua arrogância derrete, sua teimosia pulveriza, suas ideias viram cinzas. Você tornou-se esse peixe desesperado tentando sobreviver na areia da praia. Chega à rua, os carros do UBER desapareceram, os taxis não existem, e você quase se desespera, e se pergunta como chegará ao aquário salvador?

Você pede ajuda a desconhecidos, finalmente alguém te ouve, mesmo que a voz quase não seja voz, mas um raspar de língua no gelo. A moça consegue me chamar o UBER, me diz a placa que sequer ouvi. Há chance de não cair na rua, na areia, não me debater até que tudo desapareça. Você está sozinho, sem ar, quase sem vida, sem nada. Mas há algo dentro de você que resiste, um ser que te segura pelas mãos e te ergue, te empurra para a vida.

Finalmente chego ao hospital, um cilindro verde é colocado junto ao meu corpo. Carne e aço unidos pelo oxigênio. Desse bicho estranho escapa o invisível precioso que penetra as narinas com violência, faz o peixe reduzir sua agonia, dando-lhe a chance de escapar da crueldade do anzol.

No aquário, você está a mercê de tudo e de todos. Gente que você nunca viu na vida agora tem poder sobre você. Total. Você só obedece. Se deixa levar. A máquina de ver por dentro confirma que seus pulmões estão tomados pela besta, 75%. Ao peixe restam 25% de chances. Pergunto se o peixe tem salvação? Claro que sim! Consola o tratador do aquário.

A luta começa, a guerra, o duelo, o combate. As agulhas não importam, os remédios amargos não importam, você ser criança de novo não importa, não há pudor, não há vergonha, o peixe só quer voltar a nadar, viver a beleza do mar da vida.

Dentro de você a besta trabalha, dia e noite, esse peixe de outro planeta que quer te matar sem maldade, acabar com o teu oceano, te enterrar no fundo da terra, porque é sua natureza. Febre, febre, febre. O canto molhado da besta, suor e lágrimas, solidão e medo.

Ao seu lado, há um outro peixe, pior do que você, com tubos, o corpo amarrado como se fosse um perigoso prisioneiro. Você olha para o seu companheiro peixe de agonia e consegue sentir todo o seu sofrimento. O peixe que sofre mais ajuda ao peixe que sofre menos; desejo que ele se salve também, que se liberte, não seja mais esse corpo inerte anestesiado, pré-morte. Sua voz e a minha voz são os sons dos monitores. As máquinas que como cães de guarda de um campo de concentração monitoram tudo em nossa frágil carcaça.

O coração dispara, o cão late; a saturação cai, o cão late; um latido agudo, bizarro, que te tortura, que te enlouquece. Mas nesse inferno particular, ocorre algo maravilhoso. Você encontra humanidade. Homens e mulheres que escolheram passar seus dias cuidando de peixes. Eles cuidam de você, mesmo que estejam produzindo dor em você, mas te consolam, te dizem uma palavra de ânimo, esperança. Isso te faz ir adiante, ao encontro das águas.

São muitas lembranças dos 9 dias que vivi esta experiência incrível e tão perigosa. Saí melhor como pessoa. Aprendi que não vale à pena guardar mágoa, rancor, ressentimentos, tristezas. Agora sou um simples peixe-palhaço, que só deseja viver em paz e ser útil aos outros peixes deste mundo de águas turbulentas.

E sonho. Sonho um Brasil guiado por gente humana. Gente de carne e osso, peixes de verdade, e não tubarões assassinos. Que Deus livre o Brasil de todo o mal. Nosso povo nunca sofreu tanto. Não podemos aceitar o que está aí. É hora de um basta à besta que tem tornado tudo irrespirável. Não podemos continuar agonizando.

Obrigado a todos que me enviaram energia, aos médicos e enfermeiros do Hospital São José, Teresópolis. Muito obrigado por terem me ensinado a ser um peixe que nada um pouco melhor. Um peixe mais humano.

Francis Ivanovich.

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